Na Folha de SP, setor industrial apresenta uma visão distorcida da realidade que envolve a guerra às drogas no Brasil

O STF vai em breve debater o artigo da Lei Antidrogas (nº 11.343 de 2006), que proíbe o armazenamento, plantio e transporte de drogas para uso pessoal. O processo julga a inconstitucionalidade da Lei. Uma associação da indústria medicinal da maconha diz que a possível aprovação do porte de drogas desviará foco da Anvisa para o negócio voltado à saúde.

Em artigo publicado na Folha SP, Bruna Rocha, presidente executiva da BRCann – Associação Brasileira das Indústrias de Canabinóides afirmou que o mercado da cannabis medicinal cresceu 201% nas vendas nas farmácias, com a estatística de 193 mil unidades ante pouco mais de 62 mil no mesmo período de 2022. A indústria farmacêutica já opera em muitos lugares com altos rendimentos. Ou seja, a manutenção da proibição só colabora com esse setor para que ele tenha mais e mais lucros. Ela se sente ameaçada pela descriminalização, como se isso fosse alterar seu foco ou algo relacionado ao seu público-alvo, que é a classe média e alta.

Obviamente que o país precisa de deter em questões como segurança pública antes de abordar, isoladamente, a questão do porte legalizado. Mas a proibição justamente favorece o tráfico de drogas e a violência nas comunidades. Ao abordar o assunto apenas do ponto de vista do mercado, a presidente da BRCann negligenciou uma discussão que tem raízes profundas no racismo estrutural brasileiro, tornando-a superficial. Eles ignoraram inúmeros trabalhos acadêmicos de várias áreas do conhecimento humano e deixaram de considerar a importância da justiça de reparação histórica. Essa abordagem desconectada da realidade concentra-se apenas em um aspecto que, se analisado de forma mais ampla, beneficiará o mercado a médio prazo. No entanto, isso não deve ser o principal argumento em comparação com as implicações práticas da decisão do STF. Na prática, a descriminalização impedirá que pessoas negras e de baixa renda sejam encarceradas pelo simples fato de portarem a mesma substância que pessoas brancas de classe média têm acesso, incluindo as flores da planta. Vale ressaltar que a maconha é acessível no Brasil para aqueles que têm recursos financeiros e passam pelos trâmites burocráticos necessários.

As famílias que dependem do tratamento à base de cannabidiol ficam muitas vezes reféns da importação dos produtos, que aqui são vendidos com altos preços. Entre 2015 e 2021, o Brasil registrou 70 mil pedidos de importação e, nesse meio tempo, passou a permitir que produtos à base de cannabis sejam comercializados em farmácias e drogarias. O THC, tão estigmatizado, é vendido em farmácias em formato de spray por mais de R$ 2.500, além de ser comercializado como prensado no mercado informal. É a mesma planta e a mesma substância. A diferença está na cor da pele e na condição econômica.

E o cultivo? Um projeto de lei está em curso [para autorizá-lo] e, embora tenha aprovação nas comissões, precisa ser votado. Outro ponto é o fornecimento de produtos ou medicamentos à base de maconha no SUS, dentro do modelo Farmácia Viva. Hoje temos iniciativas nos estados e municípios, mas nada materializado no governo federal. O fornecimento através do SUS deve ser feito com produtos de fabricação nacional. É vergonhoso pensar em manter a importação do que podemos produzir localmente. Aliás, seria mais ético e também financeiramente interessante se as empresas começassem a cultivar a planta aqui. Isso seria uma forma de reparação histórica tão necessária. É um dever moral, assim como a desobediência civil pacífica praticada por todas as associações que ajudam tantas pessoas e não afetam significativamente o mercado já consolidado das empresas.

A reportagem desconsidera valores morais distorcidos que precisam ser desarticulados por meio de informações amplas e de conhecimento público. Ela se concentra apenas em seus interesses, sem perceber que a descriminalização pode resultar na diminuição da burocracia enfrentada atualmente para a obtenção legal de óleos, extratos e outras formas de apresentação da substância.      

Descriminalizar é bom para todos, inclusive pro mercado.

Descriminalizar é saúde coletiva.

Fonte Folha de SP:
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painelsa/2023/06/liberacao-de-drogas-pelo-stf-atrapalha-mercado-medicinal-da-maconha-diz-setor.shtml

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